Com as novas regras, a gestão das contas públicas ganha mais flexibilidade. Entenda agora como isso impactará na economia.
O tão aguardado arcabouço fiscal substituiu o regime de teto de gastos, em vigor desde o governo Temer até o começo do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A expressão “arcabouço”, que significa “estrutura” ou “base”, refere-se às normas que darão direção à atuação da política fiscal brasileira. O anúncio dessas regras foi feito em 30 de março pelo atual Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em coletiva de imprensa, juntamente com a Ministra do Planejamento, Simone Tebet.
Mas afinal, como funcionará o arcabouço fiscal na prática e quais serão seus reflexos na economia? Isso afetará os investimentos de alguma forma? Para responder a essas e outras perguntas, preparamos este guia com os principais aspectos que você precisa conhecer sobre o assunto. Portanto, se você também tem dúvidas e deseja entender quais serão os efeitos das novas normas fiscais, continue lendo a seguir!
O que é o Arcabouço Fiscal?
Na prática, o arcabouço fiscal é composto por um conjunto de regras que tem como objetivo evitar o descontrole das contas públicas. Em outras palavras, a ideia é impedir que o governo gaste mais do que arrecada, o que traria mais previsibilidade às finanças públicas e mais confiança por parte de credores, investidores e agentes econômicos em geral.
Teoricamente, com um cenário fiscal mais seguro, haveria espaço para uma redução da taxa Selic. Na economia, juros elevados por um longo período acabam prejudicando a atividade produtiva. Isso porque o dinheiro mais caro impacta negativamente a atividade empresarial, o que pode gerar queda de renda, desemprego e até mesmo levar o país a uma recessão em determinadas situações.
Como o arcabouço fiscal está relacionado à dívida pública?
Como mencionado, o objetivo do arcabouço fiscal é estabelecer mecanismos de controle da dívida pública. Se os gastos de um país aumentarem em proporção maior que o PIB e não houver sinal de que possam ser controlados, as finanças públicas podem gerar insegurança para os credores, aumentando os juros para compensar o risco de emprestar para um governo endividado. Isso encarece o crédito e pode desestimular o investimento no setor produtivo, desvalorizar a moeda e prejudicar o poder aquisitivo da população.
Portanto, gastos públicos controlados são fundamentais para manter a confiança na economia. No entanto, quando se trata de finanças públicas, há economistas que defendem o aspecto anticíclico da economia, o qual será explicado a seguir.
Política econômica anticíclica
Na economia, uma política anticíclica significa agir de maneira oposta a um ciclo econômico para prevenir ou corrigir possíveis desequilíbrios. Em períodos de prosperidade, com altos níveis de emprego e renda, é natural que a demanda por bens e serviços aumente, levando as empresas a produzirem mais e gerando mais receita.
Nesses momentos, o governo pode aumentar a carga tributária e economizar para períodos menos aquecidos. Já em períodos de atividade econômica baixa, com baixa demanda e alto desemprego, o governo pode gastar mais com estímulos para impulsionar a economia, mantendo o fluxo de bens e dinheiro em circulação.
Em outras palavras, as economias feitas durante a expansão podem ser usadas quando a população e as empresas precisarem de ajuda extra. É importante entender essa natureza anticíclica para compreender as mudanças que o novo arcabouço fiscal trouxe em relação ao teto de gastos, como veremos a seguir.
Como é o funcionamento do novo arcabouço fiscal?
Em essência, as novas normas fiscais irão abordar quatro pontos fundamentais:
1 – Crescimento das despesas atrelado ao aumento das receitas
No antigo teto de gastos, o aumento das despesas públicas de um ano estava condicionado à evolução do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo). Isso significa que o governo só podia gastar o equivalente à inflação medida no ano anterior.
Já o novo arcabouço fiscal prevê que o aumento de gastos acompanhe a evolução das receitas públicas, até o limite de 70%. Por exemplo, se de um ano para o outro a arrecadação crescer 2%, o governo só poderá gastar 1,4% a mais.
Para chegar no valor que pode gastar no próximo ano, o governo usa como base as receitas primárias líquidas dos últimos 12 meses até junho do ano corrente. Por sua vez, as receitas primárias líquidas (ou não financeiras) são aquelas originadas de tributos, transferências recebidas de outros entes públicos e royalties, por exemplo, deduzidas das transferências obrigatórias a determinados entes.
“Com as regras anteriores, em períodos de recessão era preciso cortar tanto os gastos que isso prejudicava o movimento de recuperação da economia. Os exemplos são muitos, basta ver a quantidade de obras públicas inacabadas que ainda temos. Ou seja, tínhamos um problema tanto na expansão quanto na retração econômica”, explicou Haddad no anúncio do novo arcabouço fiscal.
Para o ministro, fazer as despesas acompanharem a trajetória da receita trará uma trajetória consistente de resultado primário. “Isso amplia o espaço para dar sustentabilidade às contas públicas, mas sem rigidez absoluta, pois as demandas sociais estão aí e precisam ser atendidas, de maneira responsável”, complementou.
Ficam de fora dessa regra os gastos com saúde e educação, que sofreram drásticas reduções nos últimos anos. Essas despesas voltarão a ser reajustadas pelas regras anteriores ao teto de gastos, que previa crescimento de 15% da receita líquida para a saúde, e de 18% para a educação. Inclusive, o fundo da educação básica (Fundeb) e o piso da enfermagem, que já foram aprovados pelo Congresso, também estão de fora das novas normas fiscais.
2 – O aumento das despesas está sujeito a um teto e um piso
É importante destacar que o aumento real das despesas, descontada a inflação, está sujeito a um teto e um piso estabelecidos em uma banda que varia de 0,6% a 2,5%, prevendo situações específicas.
Por exemplo, se a receita primária líquida crescer 5% de um ano para outro, pelo cálculo dos 70%, o governo pode aumentar as despesas em até 3,5% (ou seja, 70% de 5%). No entanto, o aumento deve respeitar o teto de 2,5%, para formar uma reserva em períodos de contração na economia.
Por outro lado, se as receitas não crescerem ou crescerem de forma pouco expressiva nos 12 meses de referência, o governo pode aumentar os gastos públicos em até 0,6%. Segundo Haddad, essa medida evita a rigidez no orçamento e permite ao governo lidar com excepcionalidades.
O piso de 0,6% foi estabelecido com base em um “crescimento vegetativo” verificado desde a promulgação do antigo teto de gastos. Já o teto de 2,5% é importante para que o governo possa formar um colchão em períodos de crise, garantindo o direito do cidadão aos serviços constitucionalmente estabelecidos e fornecendo segurança tanto para os empresários que querem investir quanto para as famílias que precisam do apoio do governo.
3 – Se a meta não for alcançada, a despesa deverá reduzir mais no ano seguinte
O novo marco fiscal visa, entre outros objetivos, a redução do atual déficit fiscal, que ocorre quando as despesas públicas superam as receitas. Segundo o governo, a meta é eliminar o déficit até 2024 e alcançar um superávit fiscal de 0,5% do PIB a partir de 2025, com uma margem de variação de 0,25% para cima ou para baixo.
Dessa forma, espera-se que o superávit fiscal fique dentro da banda de 0,25% e 0,75% do PIB a partir de 2025. Caso isso não ocorra, no ano seguinte as despesas públicas só poderão crescer em 50% do aumento da receita, em vez de 70%.
Anteriormente, as metas de superávit primário eram valores fixos, o que, na opinião do Ministro Haddad, não era sensato. “Não se pode fixar uma meta com dois dígitos após a vírgula e, em vez disso, deve-se seguir uma trajetória. Se as metas não forem alcançadas e ficarem abaixo da banda, existem mecanismos de correção para o ano seguinte”, explicou o ministro.
Piso para investimentos, com flexibilidade caso as receitas aumentem mais do que esperado
O plano também inclui um limite mínimo de cerca de R$ 75 bilhões, ajustado pela inflação anual, para investimentos. Se houver um excedente de recursos acima da banda mencionada anteriormente, o governo pode usá-lo para novos investimentos em projetos destinados à população. Há também flexibilidade nesse limite mínimo caso as receitas cresçam acima do esperado.
Vai ocorrer aumento de impostos?
No comunicado à imprensa, o ministro Haddad afirmou que a prioridade do governo é aumentar a arrecadação tributária e não cortar gastos. No entanto, ele destacou que não há planos para criar novos impostos ou aumentar as alíquotas dos impostos existentes.
Haddad disse: “Não estamos considerando a CPMF, o fim do Simples ou a reoneração da folha de pagamento. Temos muitos setores que foram excessivamente beneficiados com regras estabelecidas ao longo de décadas, e que não foram revistas com base em resultados. Muitas dessas regras são ineficientes e precisam ser revogadas. Ao longo do ano, implementaremos medidas para tornar essas mudanças consistentes com os resultados previstos neste anúncio”.
Os setores que precisam ser revistos ainda não foram claramente definidos. Recentemente, o setor de apostas eletrônicas tem sido alvo de regulamentação, o que pode resultar em uma maior base tributária.
Outra medida planejada pelo governo é alterar a tributação de fundos exclusivos de investidores. A Receita Federal há muito tempo defende essa mudança, que já foi tentada sem sucesso em governos anteriores.
O ministro da Fazenda destacou que, se aqueles que não pagam impostos começarem a pagar, os juros poderão ser reduzidos para todos. No entanto, para que isso aconteça, aqueles que estão fora do sistema tributário precisam ser incluídos.
Quando as novas regras fiscais começam a valer?
Durante a coletiva de imprensa em 30 de março, Haddad explicou que ainda era necessário concluir o texto do novo arcabouço fiscal. Contudo, espera-se que o projeto seja enviado ao Congresso nos primeiros dias de abril.
Inicialmente, o projeto deve ser tramitado como um projeto de lei complementar na Câmara dos Deputados, que requer aprovação por maioria absoluta. Isso equivale ao voto favorável de 41 senadores e 257 deputados federais.
Não há uma data definida para a votação do texto. O senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou que, devido à boa aceitação da proposta até mesmo pela oposição, espera-se que a tramitação ocorra rapidamente. O líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), acrescentou que “o espírito na Casa é de colaboração”.
Existe a possibilidade de o plenário aprovar a tramitação do projeto em regime de urgência, mediante um acordo entre as lideranças. Além disso, o presidente Lula pode solicitar urgência, o que exigiria a votação da proposta em 45 dias. Caso contrário, o projeto impediria a pauta da Câmara ou do Senado, dependendo de onde estiver no final desse prazo.
Após a avaliação do projeto de lei complementar pela Câmara, ele será enviado ao Senado. Se não houver mudanças, o texto seguirá para a sanção do presidente da República.
No entanto, se os senadores modificarem o texto, o projeto precisará voltar para a Câmara, que deverá avaliar se concorda ou não com as alterações. Somente depois de uma nova votação o projeto será encaminhado para sanção do chefe do Executivo.
Quais investimentos podem ser afetados pelas mudanças no arcabouço fiscal?
As novas regras fiscais podem beneficiar principalmente ações ligadas ao varejo, construção civil e outros setores associados à economia doméstica.
Isso ocorre porque, com a expectativa de inflação ancorada, é provável que o dólar caia e a inflação projetada fique mais próxima da meta. Com isso, o Banco Central pode começar a baixar as taxas de juros, que pode gerar um impacto positivo em todo o mercado.
Até o momento, o foco do governo está no Bolsa Família, seguido pelo programa Minha Casa, Minha Vida e pelo aumento de gastos no programa de financiamento ao estudante do ensino superior (Fies). Mesmo que não se saiba ao certo quais áreas serão privilegiadas pelo governo atual, o fato é que o novo arcabouço fiscal dá mais segurança ao Banco Central em relação ao equilíbrio das contas públicas. O que permite que a entidade comece a reduzir as taxas de juros.
A bolsa como um todo seria beneficiada pela queda dos juros, mas especialmente as small caps. Por precisarem de investimentos constantes, essas empresas geralmente têm mais dívidas, o que prejudica seu resultado em momentos de taxas de juros mais altas.
Outro fator que beneficia essas empresas com a taxa Selic mais baixa é o fato de que elas são quase totalmente voltadas para a economia brasileira. No caso do Ibovespa, cerca de 40% do peso está em commodities, ou seja, em empresas voltadas principalmente para o mercado externo. Quanto à renda fixa, a possível antecipação do corte de juros poderá beneficiar títulos prefixados e atrelados à inflação, de acordo com alguns analistas do mercado.